terça-feira, 1 de maio de 2012

Mãos dançantes e bobagens congeladas.


Sinto o frio na ponta dos meus dedos, e logo não sinto nada. Detesto luvas, pois para preencher o vazio tátil da língua e dos lábios é que preciso sentir as extremidades formando outros tipos de dizeres, palavras em pleno tap tap tap
e assim meus dedos endurecem, e agora, com o sangue barrado pelos cristaizinhos infiltrados nas juntas, ficam arroxeadinhos, débeis, com dificuldades para agir em seu incessante tap tap tap.
Pois o inverno se aproxima, pois o tempo não respira, pois o presente descompassa, pois a vida se dispersa, pois o mundo todo não parece estar sempre a girar, mas gira. E esse vento todo, será o mundo girando? Ou será o silvo da solidão que enrola meu peito em constrição, o uivo da lua que quebra em prateados de brilhantes na rua?
E se meus dedinhos caíssem? Como seria ser muda de dedos? Apavorante é pensar em não poder passar as noites de inverno aqui, ignorando o por-ti-amado frio, o sono que dói os olhos, a solidão que faz barulho de rastro na areia e cobreja maldita. Ignorando a minha própria piração, já que fico louca de não conseguir (ar)rumar meu raciocínio, de desejos e confissões, de nos desentendermos propositalmente sem querer. Ignorando a carência ao ler tuas palavras não como som, mas como abraço. Apavorante é pensar que meus dedinhos tão delicados conquistaram teu afeto, e que eu posso ser suficiente com meu tap tap, meu desatino desenfreado, minha conversa vã e minha paixão sem explicação (mas certamente também é idéia que enche meu peito).
Se eu gastasse todos meus dedos, será que você tentaria me amar pela minha voz?
Minha voz rouca de inverno não é nem de longe mais interessante do que o tap tap tap dos meus dedos pequeninos.

terça-feira, 20 de março de 2012

90 Days of Summer

Muito prazer, quero te conhecer, tens minha atenção, a noite passou, tenho que ir, quero ficar.
Vamos nos ver, olhos, mãos, como estás, mudaste comigo, sou atenção, sou obsessão, irritas e envolves, interesse, vamos voltar para conversar.
Sinceridade, pensas em mim, penso em ti, barreiras e rituais, negas, não insisto, queremos avançar.
Mostra-se, mostro-me, afeição, vamos nos casar, tempestade insiste, inevitável tormenta, razão e vontade, rápido e somos vorazes, desentender mas gostar.
Abre-te, vejo-te, sonho, acordo pensando em ti.
Abro-me, veja-me, quero te enroscar, vamos morar juntos, elefantes, covas no jardim, velório na mesa de jantar, somos passados e o futuro.
Medo, submarino, afoga-te, pede, demonstra, caia, te seguro, caio contigo, quero voar.
Vamos dançar, cair, errar, sofrer, estar, confessar, ignorar, abusar, tropeçar, sacrificar, vamos nos encontrar. Ciúmes, carinho, cansaço, esperança, recuo, maré, vaidade, admiração, ânsia, inquietação, paixão.
Venha, venho, esteja, estou, atire-se, atiro-me, atire-me, segure-me, leve-me.
Discernimento, não. Distância, não.
Dúvidas, não. Carência, não.
Decepção, não. Decepção...

Amor.

Mas acabou o verão.
Agora?
Fim do caminho
e promessas no teu coração.

Duram pouco, os amores de verão.

O tempo em que o Sol demorava para se pôr, o tempo em que o sal do mar secava em meu corpo. O tempo em que eu prendia os cabelos acima da nuca, sentia tesão, acreditava que tudo daria fatalmente certo. O futuro parecia misericordioso, o passado estava escondido.

Passou.

O Sol se pôs. A água do banho lavou tua saliva. Os cabelos caíram sobre meu rosto, suplicam "esta és tu". Aqui estou, o futuro será implacável e do passado, das promessas vãs e da dor da queda eu lembro.

Passou o verão.

Do meu amor eu recordo as esperanças tolas, inquietas. Das esperanças, eu recordo a tolice. Da verdade, eu colho a dúvida, e da dúvida, eu colho o medo. Da solidão, eu não sinto saudades, mas a quero. Quero querê-la. Exijo-a. Cobro-a, serpenteando, "mê dê meu veneno", "me devolve a maçã". "Enterre-me novamente, e sem flores, esqueça-me. Se eu gritar, ignore. Se eu chorar, ignore."
O Sol se pôs e eu surgi do meu refúgio, da escuridão. Essa palidez de sombra não sou eu, mas é o que eu quero ser. Apesar do meu coração clamar pelo amor, meu coração suplica para ser selado em paz, velado em silêncio, não fúnebre, mas sereno. A razão, de seu lado, só cala e esquece, lembra e explode, volta, revolta-se, revela, releva-se.
Por que sou amor? Por que sou pranto alto, carência e ardor? Por que sou necessidade? Por que sou dependência química, desejo carnal e arrogância? Me escondo do mundo no vácuo da emoção, na apática e angustiante estagnação, mas me escondo da solidão em meus sorrisos, confissões, esperanças e sonhos.

Hoje quero, então, achar um lugar calado onde nada acontecerá. Quero ser nada e ninguém, e fingir que há nada e ninguém, que importam o nada e o ninguém. Amanhã voltarei, então, com cinismo e a cabeça baixa, mas expectativas de compreensão. E depois do dia de amanhã, direi apenas "não é nada".
Até a última folha de árvore secar e cair no chão chegada a hora de hibernar, enterrada embaixo da neve e da minha devoção lógica ao absoluto vazio.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Beija-Flor


Sou beija-flor,
sorvendo o mel e semeando a dor.
Toco entre suas rubras pétalas, penetro em seu âmago, e vôo. 
Nunca mais a vejo.
As flores que provei não tiveram tempo para amor, apenas para sentir meu sabor amargo, meu resto infame. 
Mas, ao menos, não houve momento suficiente para a decepção. E se houve, eu qui-la, a gozar meu ego.
Nada me trás maior angústia que pousar, vendo a vida passar.
Sou beija-flor terrível, que quer flores sinuosas surgidas de lindos vasos adornados,
flores sem mel, atrás de janelas fechadas, em casas iluminadas.
Flores que não me acenam e não vêem em mim o prazer.
Me deixe te mostrar do que eu, bicho feio e pouco, avezinha quebradiça, sou capaz,
não pouso em teu recanto mas eu sugo todo o seu encanto,
te delicio e depois, desejo ir.


Mas após ver-te linda atrás de um angustiante vidro fechado, a acenar para mim com toda a sua elegância, fico a te rondar, sem saber se pouso ou não para observar...
Sou todo pedidos:
"Me deixe beijar teus lábios de mel, minha flor, sorver tua dor e semear o amor."

terça-feira, 6 de março de 2012

agarrando fumaça

Sinto falta do que não tive. Clamo por amores dos quais em uma possibilidade de existência eu acredito. Por vezes digo seu nome, sussurrado, só para tentar solidificar uma presença, sintetizar esperanças. Contudo, como o contrário das saudades românticas que intensificam a tórrida obsessão, quando ele se ausenta, meu amor não infla. Este, em fato (ou supõe-se que sim), murcha. A chama oscila. A fumaça se dispersa e a lembrança do seu sorriso foge das imagens dos meus sonhos. Como uma foto gasta pela deprimente luz branca da minha rotina.
Eu anseio pelos desejos despertados por nossas sinceridades e pela sinceridade de nossas confissões. Sinto falta das suas mãos que nunca segurei, das suas palavras que nunca ouvi, dos sentimentos que eu não sei se sei como e quais são e entretanto asseguro que conheço. Quando sinto que seus olhos podem me enxergar, através do mundo e através de mim, é como cravar uma adaga fina em meu peito. Todo o ar e dor que busco me invadem, deixando minha vida escorrer em uma sanguinária torrente de fantasias irracionais. Tudo em uma fração de segundo que inutilmente eu gostaria de guardar.
Mas ele me escapa, pois é névoa e inexistência, é ausência, é ilusão. E é loucura.
Quem sou eu para saber? Para preferir, controlar, querer? Quem somos nós para definir o quanto podemos ser indulgentes com a nossas tempestuosidades e nossos elefantes em xícaras de chá? Eu sou nada mais que a fraqueza a que você me sujeita, me sustentando longe dessa mecânica sequência de temer e afastar, dessa minha insensibilidade e inteligência. Longe da sua ausência e também assim tão próxima desta ao ponto de me amargurar.
Olhando assim, para a luz suja do meu quarto, para as letras que eu defino com as pontas dos dedos, para o teto, chão e porta, para meu travesseiro, para o incenso espiralando no vazio, sei que ele está a viver a sua rotina, a existir à distância, em seus próprios desejos, necessidades e satisfações.

Mas eu peço a ele que volte.
Volte para que eu possa perder o discernimento, desistir de meu sono enquanto fito meus sonhos. Volte para que eu possa ser tola. Volte para eu me lembrar de seu sorriso. Volte para que eu possa arriscar me afogar dentro de sua névoa e nadar, desfrutando dos nossos momentos efêmeros e de suas palavras incertas.
Nadar de olhos fechados, a fingir que posso ver.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O instante em que eu vislumbrei Luz.


Às vezes nós esquecemos aquilo que devemos proteger. Às vezes nós nos esquecemos de que o tempo é supremo, e que acima dele há o vazio.
Onde nós estamos, agora? Enquanto o mundo faz barulho. Enquanto árvores caem, gatilhos são puxados, pessoas bebem e riem, pessoas nadam em lindos lagos, gatos dão cria, cachorros se mordem até sangrarem, elefantes velhos deixam a manada ir à frente, mulheres solitárias rezam o terço, trabalhadores batem o martelo no metal, crianças costuram nossos tênis, peixes nadam na direção contrária do rio, pessoas dormem na sarjeta sob a chuva, adolescentes perdem os namorados. E onde não há vida que se veja, há vida. As correntezas arrastam, as ondas quebram, o vento uiva e sussurra raspando as pedras azuladas das grandes montanhas, as cavernas gotejam milenarmente, a chuva e a neve caem, a terra se enche de grossas camadas de neve, os icebergs viajam balançantes. Por estarmos onde estamos, todas essas coisas deixam então de existir? Ninguém mais está sofrendo nem sendo feliz?
De que valem todas as nossas virtudes se deixamos escapar a única coisa que nos vale? Não conseguimos parar de nos enganar, contemplando uma vida sem sentido, vivendo num mundo que não sabemos entender.
A nossa única perspectiva de realidade é a mesma mesquinharia, limitada e fácil. Um veneno que a cobra chamada cegueira inoculou em nossas veias, que percorre nosso corpo e nos deixa doentes. A pior doença que poderíamos ter, uma cegueira contagiosa, uma treva geral sobre o solo do planeta, fazendo todos deixarem para trás uma parte de si, no meio do caminho, para ser pisoteada pelos restantes. Um sacrifício a ser entregue para poder lembrar de como falar com as pessoas, como se sentar a mesa, como não se morrer de fome, como permanecer calado, como esquecer. Para podermos viver em sociedade.
Nessa sociedade?
Nada mais nos faz sentido, mas não nos importamos. Continuamos a agir da única maneira que sabemos. Escrevemos nossos textos apaixonados, pedimos perdão, choramos e fazemos promessas. E erramos novamente.
O homem ergueu grandes cidades. Casas, prédios, arranha-céus magníficos. Obras da arquitetura no centro de São Paulo, que as pessoas não param para olhar. Tijolo sobre tijolo torto nas periferias. Torres enormes, energia passando e se espalhando através de fios, ruas, calçadas, sinalização de trânsito. Ele construiu uma enorme prisão, mas não com celas. Porque o preso segue resignado até ele digerir a idéia do cárcere.
Mas o pior cárcere é aquele que nós colocamos na nossa própria mente.
O egoísmo.
A inveja.
A preguiça.
O rancor.
A arrogância.
A indiferença.
Quantas mãos famintas eu, um principezinho tão bem alimentado, já não afastei? Quantas pessoas eu já não magoei? Já desviei quantos olhares, já proferi quantas palavras ácidas, já praguejei inutilmente quantas máscaras para o meu desejo de vingança, já ironizei quantas vidas, já fechei os olhos para quantas chacinas?
E a vergonha que resta, onde colocar? Atrás do orgulho?
A vida é...
Vamos parar e respirar.
Vamos parar.
Por favor, vamos parar e lembrar de voltar para buscarmos nossos corações.
Vamos proteger a única coisa que realmente importa.
A fome se mata. A dor passa. A febre se cura. O sorriso se esvai. A neve derrete. As nuvens sopram, o Sol resplandece em nossas faces.
Mas a morte nunca volta atrás.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Infância do Submarino


  Essas lembranças são de uma das vezes em que fui na casa de minha avó, Ana, onde antes ela havia morado com meu falecido avô Augusto.
   Eu não queria ir. Não tive opções. Minha mãe queria conversar com ela, e não permitiu que eu ficasse em casa, com meus livros. As únicas coisas que eu tive tempo de fazer antes de sairmos do apartamento velho em que morávamos foram enfiar minha gaita vermelha no bolso direito, na coxa de meus jeans surrados, e enterrar meu quepe de qualquer jeito sobre meus cabelos loiro-claros. Pegamos o carro de minha mãe e ela passou uma hora dirigindo até chegarmos na cidade vizinha, bem menos simples que a nossa.
   Minha mãe tinha duas irmãs mais novas e um irmão mais velho. Todas as minhas três tias estavam lá. Seus maridos provavelmente estavam trabalhando, e seus filhos, estudando. Aparentemente eu era o único cujos professores estavam participando da greve, que foi acabar uma semana depois. Também era eu o único elemento masculino da casa, se não formos contar com os bigodes da tia Amélia.
   Tia Antônia era magra e tinha um sorriso entristecedor. Seus dentes eram amarelados de fumo. Ninguém parecia notar nada de miserável naquele sorriso frouxo, apenas eu. Ela prendia os escassos cabelos castanho-claros em um coque meio solto e alto, e tinha dedos finos e compridos que deslizavam pelo meu rosto enquanto ela dizia "que menino mais bonzinho". Nunca gostei de pessoas problemáticas, mas ela me despertava grande curiosidade.
   Talvez o marido dela, irmão de minha mãe, batesse nela e enchesse a cara com pinga barata. De qualquer forma, ela se suicidou um ano depois.
   Minha tia Rosana era gorda e, como se o nome o sugerisse, rosada, e lembrava muito minha mãe com cabelos da cor dos meus. Cozinhava para mim quando eu a visitava, por isso, gostava de ir até a casa dela, apesar de não gostar de conversar com ela. Ela me fazia perguntas sempre, "você ainda gosta de navios?" ou "já arranjou uma namorada, Henrique?". Eu jamais daria as mãos e beijaria o rosto (conceito de namoro que tia Rosana achava que eu, com catorze anos, tinha) de nenhuma das garotas que eu conhecia. As que não eram sentimentais eram como a Suzie da minha segunda série, legais mas de cabelos ou narizes ou dentes ou mãos feios ou usavam óculos. De qualquer maneira, eu respondia monossilabicamente enquanto mastigava o meu pedaço de torta de maçã.
   Tia Antônia e tia Amélia estavam sentadas em duas poltronas floridas na sala de visitas, desenvolvendo uma interessada conversa sobre ferros de passar roupas, enquanto no sofá mamãe e vovó Ana folheavam um álbum empoeirado de fotos apoiado sobre a mesa de centro. Tia Rosana andava pela cozinha, e o cheiro de torta de maçã assando começava a se espalhar pela casa.
   Já eu, ficava sentado em um banco, agradavelmente esquecido e levemente entediado. Observava, distante, as pinturas horríveis de flores e naturezas mortas penduradas na parede cor creme da sala. O trabalho das molduras era muito mais bonito que as telas em si. Talvez fosse melhor pendurar apenas as molduras, vazias e vazadas. Pedi licença com discrição e segui até o corredor. Subi as escadas em espiral, tentando pisar nas partes mais largas dos degraus.
   No corredor do segundo andar, havia algumas portas. Segui até o quarto de minha avó, e tentei abrir a porta o mais silenciosamente possível. Esta rangeu tão lentamente quanto eu a empurrei, então me esgueirei cômodo adentro sem abri-la por completo. Minha avô costumava dormir sozinha numa cama de casal. O quarto tinha o cheiro dela, uma mistura de sabonete, flores e hospital. Ao lado esquerdo da cama havia uma foto de meu avô sobre o criado mudo. Ao lado direito, perto da janela, um abajur florido e um despertador sobre outro criado mudo. Abri as portas do armário e revirei um pouco, achando calcinhas velhas e rendadas, sutiãs de tons lavados, pijamas moles e vestidos de bolinha, entre outras peças gastas. Na última gaveta, porém, revirei alguns pullovers pinicantes e, com surpresa, apalpei e achei outra coisa. Segurei.
   Ao trazer a tona o objeto encontrado, me maravilhei. Era um relógio de bolso de prata com a figura em alto relevo de uma fragata à vela clássica. Um objeto completamente inutilizado, sujo e ironicamente esquecido no tempo, que eu acreditava ser do meu avô, assim como o quepe sobre minha cabeça. Meu avô nunca ingressou na marinha, mas ele amava navios. Minha avó detestava uma falsa insígnia de ombro que ele possuia quando eu tinha cinco anos, com duas faixas douradas e uma terceira com uma volta. Eu não fazia idéia do que aquilo significava, mas eu brincava com o objeto. Até o dia no qual meu avô o entregou para meu primo Douglas, filho da tia Amélia.
   Eu guardei o relógio no bolso esquerdo da minha calça e tentei organizar os agasalhos de lã de volta na gaveta. Ficaram satisfatórios, mas longe de estarem como os encontrei. Fechei a porta do armário e ao levantar, senti que os dois objetos que eu levava no bolso pesavam minhas calças para baixo, e eu estava sem cinto. Botei as mãos nos bolsos, segurando os objetos, e voltei ao corredor. Agora que me recordo, não lembrei de fechar a porta. Espiei os outros quartos, mas estavam quase vazios. Eram três, com armários em compensado, criados mudos que eram, na verdade, banquinhos largos, um deles tinha uma cortina vermelha a bloquear a claridade externa, deixando o quarto vampiresco, e o maior tinha um espelho de pé quadrado ao pé da cama, virado para a porta. Observei meu reflexo, com uma mão no bolso e a cara cheia de espinhas, e então, fechei a porta maquinalmente.
   Ao chegar à escada em espiral e estacar no primeiro degrau, senti uma aflição ao olhar para o último, no andar de baixo. Nunca fui chegado a alturas. Fui descendo os degraus, segurando-me prudentemente ao corrimão.
   Quando retornei à sala, parecia que minha mãe tinha dado por minha falta, pois me olhou e me chamou. A torta da tia Rosana já impregnava seu cheiro canelado pela casa toda. Cheguei à mesa de centro e parei ao lado de minha avó, olhando em direção ao chão. Ela pediu "sente-se ao meu lado, Henrique". Eu sentei no sofá, resignado ao desconforto familiar. "Clarice," ela continuou enquanto folheava o álbum, "lembra desse portão?"
   Minha mãe fitou a foto com um sorriso torto. "Lembro, claro que sim." Vó Ana também sorriu, ambas sorriam muito parecido, e olhou para mim com aqueles olhos de óleo de castanha, "E você, Henry?"
   Eu não sorri. Meu sorriso era a imagem de meu pai, do que pude ver nas fotos que um dia achei na gaveta da minha mãe, enquanto vasculhava por cigarros. Não os achei das últimas vezes que procurei. Minha mãe não fumava, mas costumava guardar os cigarros favoritos do meu pai junto com algumas fotos dele, como se esperasse que, atraído pelo cheiro forte de tabaco daquela gaveta, ele voltasse, deitasse na cama com o coturno calçados e gritasse "Clarice, vá comprar umas cervejas e panos, esse lugar está nojento!". Depois que ela viu que eu estava começando a fumar com treze anos de idade, arranjando cigarros com os homens insensíveis nas calçadas dos bares, ela os jogou fora e me chamou para conversar. Eu causava uma grande comoção quando sorria, nos jantares de família. Todos me olhavam e diziam que eu era igual ao meu pai, com distantes memórias, um transe se instaurava no recinto todo por alguns instantes. Meus olhos causavam uma movimentação semelhante quando eu chegava e quando eu ia embora, mas curiosamente eram esquecidos no meio-tempo, podendo observar tudo à vontade.
   "Não sei", respondi. Na verdade o portão de ferro, com uma trepadeira cobrindo os muros de ambos os lados, me parecia familiar. Eu não conseguia lembrar de nada, mesmo olhando além, para a casinha que ficava atrás dele, as árvores no caminho, as flores no pé do muro. "Já moramos nessa casa, filho." Eu não lembrava de nada daquilo, mas minha mãe já havia me contado sobre a casa que morávamos até meus dois anos de idade. "Era gostoso, tinhamos um cachorro, lembra? Você às vezes chamava pelo nome dele, como era mesmo o nome dele, mãe?" E minha avó emendou, "Era um ótimo cachorro, adorava o Henry, mas tivemos que sacrificar. Foi muito triste." E eu permaneci calado, sem conseguir lembrar o nome do animal, olhando para o pé da mesa de centro.
   Minha avó virou a página. Tinham alguns familiares na página seguinte e na próxima. Parecia ser uma festa em família. Eu reconheci alguns rostos: meus tios, incluindo o irmão de minha mãe, Thiago, hoje viúvo e bêbado, meus primos Douglas e Arthur, filhos da tia Amélia, e dois dos três filhos de tia Rosana, Marrie e Thiago (em homenagem ao tio), que como o pai tinham cabelos escuros. Reconheci um amigo do Douglas, que gostava de botar fogo em gatos, e uma velha vizinha da minha avó. As fotos pareciam todas iguais, as pessoas sorridentes, conversando, comendo, bebendo e por vezes olhando para o lado oposto da câmera, enquanto eu aparecia em algumas fotos, com a minha habitual cara de idiota. Vó Ana e Clarice faziam comentários, alguns cheios de nostalgia, outros apenas mexericos de mulher, e um ou outro eram até engraçados, como o comentário sobre Douglas por minha avó, "Esse menino sempre foi meio orelhudo." Tia Amélia ouviu e deu risada com gosto. Tinham fotos de bebê, e eu aparentemente era o menor de todos. Ainda que gordinho, os outros eram verdadeiras almofadas rosas. Eu tinha cara de sono.
   Quando o álbum estava acabando, me mandaram ir buscar outro, na segunda prateleira de uma estante de ferro que havia na sala. Eu parei na frente da estante, olhando um cavalo de pedra empinando na terceira prateleira, e fiquei a contemplar a minha infância. Nesse momento, tinha impressão que o nome do cachorro era Nicolau. Senti muito por sua morte e peguei o álbum velho de capa branca.
   Ao me sentar, minha mãe e minha avó ainda viam as fotos do que parecia ser uma reunião de família no campo. Eram fotos muito velhas em sépia, e eu aparentemente ainda não estava vivo nem em hipótese, minha mãe e Rosana estavam jovens e magras e tia Amélia tinha cabelos muito longos, tramados numa trança. Eu abri o álbum e folheei. Haviam fotos de brinquedos de madeira, de Amélia apoiada num carro velho com um cigarro na mão, uma grande quantidade de fotos de adultos que eu não fazia idéia de quem eram. Em uma foto que eu estava tinha um cara com um bigode grosso ao meu lado, com a mão no meu ombro. Eu devia ter uns dez anos, mas por mais que eu me esforçasse, não lembrava quem era o cara e também não me conformava de esquecer que lugar era aquele. Tinha fotos de uma vez que eu fui com o jovem Thiago e a Marrie em uma cachoeira, e uma delas era de Marrie chorando porque tinha levado um tombo no caminho de volta para o carro. Tinha uns onze anos, como eu, e Thiago tinha oito. Era na época que eu viajava com meus tios e primos nas férias. Quando eu voltava para casa, minha mãe parecia bem mais animada do que quando eu partia.
   Pousei o álbum sobre a mesa de centro, para as outras o verem, e minha mãe foi passando vagarosamente desde onde eu havia parado, na metade. Numa das fotos, ela parou, e olhou para mim, enquanto minha avó dizia para tia Rosana me trazer um pedaço de torta. Eu olhei para a foto. A menina na foto, no entanto, não me olhava de volta. Olhava a sua frente, com os cabelos esvoaçando em suas costas. Estava a segurar as cordas de um balanço, lançando-se para frente. Não sorria. Tinha olhos castanho-claros, molhados e brilhantes, e uma pele clara que sob a luz do pôr do Sol parecia aveludada. Sua expressão era profunda. Nunca tinha visto uma garota assim, acho. Fiquei a observá-la, e ela parecia o meu extremo oposto: Viva, boa e aérea.
   Fiquei ali, sentindo como me sentia quando ia subir as escadas em espiral e via o primeiro degrau, lá em cima, bizarro de se alcançar. Aí minha mãe disse algo que eu só lembro em partes: "É a filha da tia Amélia, aquela que estuda em um colégio interno (...)", e não lembro do nome da garota, se é que foi dito. Minha tia Rosana estendeu meu prato com uma fatia gorda de torta, e ao levantar para segurá-lo, senti o relógio rolar dentro do meu bolso. Sentei-me e comi em silêncio.